Elmord's Magic Valley

Computers, languages, and computer languages. Às vezes em Português, sometimes in English.

Orthographica II: ortografia etimológica, o latim e o proto-indo-europeu

2014-08-23 00:05 -0300. Tags: lang, rant, em-portugues

No último post eu falei um pouco sobre a questão da reforma ortográfica do português e argumentei contra a idéia de que a reforma seria um "emburrecimento da língua". Talvez você queira lê-lo antes de continuar. Neste post, apresento mais alguns pensamentos que tive sobre o assunto.

A idéia de simplificar a ortografia suscita uma tremenda oposição, como os comentários na notícia linkada no último post servem para exemplificar. Num nível mais superficial, há a oposição à mudança puramente por ser uma mudança. Não há muito o que dizer aqui além do que eu já disse no último post; orthographia não se escreve mais assim desde 1943 e ninguém está sentindo falta desses hs. Da mesma forma, acredito que ninguém ache ruim escrever bife e futebol ao inves de beef e football, e no entanto assim foi há nem tantas décadas assim.

Um argumento mais elaborado é de que a grafia das palavras deve ser mantida como está para refletir a etimologia das palavras. Por exemplo, exibir se escreve com x porque provém da palavra latina exhibere, que se escreve com x (em latim, esse x tem de fato som de ks). Manter essa ortografia é bom porque evidencia o prefixo ex-, que é comum a tantas outras palavras e tem um significado mais ou menos bem-definido. Similarmente, escrever biologia ao invés de biolojia é bom porque evidencia a relação dessa palavra com a palavra biólogo. Se escrevêssemos tudo como falamos, essas relações entre as palavras, que são visíveis em suas formas gregas e latinas originais, seriam obscurecidas.

Acontece, entretanto, que quando os romanos começaram a escrever o latim, eles o escreveram exatamente como o falavam: em latim clássico, c sempre tem som de [k] (Cicero se lê "quíquero"), g tem sempre som de [g] (magis se lê "máguis"), x sempre tem som de [ks], as consoantes duplas (como em anno) realmente eram pronunciadas mais longas, e assim por diante. Em geral, quando uma língua recém adota um sistema de escrita [alfabético], ele tende a refletir bastante fielmente a fala; é só com o tempo que, à medida em que a língua vai mudando, a escrita resiste a acompanhar essas mudanças, e perde-se a relação direta entre a grafia e a pronúncia.

Ok, mas em latim não tem problema escrever como se fala, porque latim é latim e, sendo uma língua mais "pura" e menos "corroída" pela ação do tempo, essas relações que para nós só são visíveis na ortografia eram parte da língua latina viva, e portanto sua escrita baseada na fala as conserva, right?

Well, não é bem assim. O latim não brotou do nada. Assim como o português, o espanhol, o italiano, o francês, etc. derivam de uma língua anterior (o latim), e assim formam a família das línguas latinas ou românicas, também o latim, o grego, o sânscrito, o germânico, o eslávico, etc. derivam de uma língua comum, e formam assim a família das línguas indo-européias. O problema é que essa língua é tão antiga que nunca chegou a ser escrita; porém, é possível observar as similaridades e diferenças das línguas descendentes que ela deixou e reconstruir com alguma segurança como era essa língua original. A essa língua reconstruída denomina-se proto-indo-europeu.

E assim como o português é uma versão "corroída" de latim, o latim é uma versão "corroída" de proto-indo-europeu, e algumas relações entre palavras que eram visíveis em proto-indo-europeu ou em proto-latim não o são em latim. Voltando ao nosso exemplo clássico, exibir (pronunciado "ezibir") em latim é exhibere (pronunciado "eks-híbere", sem nenhuma letra muda nem irregularidade), mostrando claramente na pronúncia e na escrita o prefixo ex-. Mas e o que fazer do -hibere? Pois acontece que hibere nada mais é do que uma versão "corrompida" do verbo habere, que dá origem ao nosso haver. Essa mudança habere → hibere não é de uma natureza muito diferente da pronúncia de comi como "cumi" ou escola como "iscola" em português brasileiro moderno. E no entanto, essa "corrupção" que ocorreu entre o proto-latim e o latim foi tomada como forma oficial em latim; em latim clássico, se escreve como se fala.

Outro exemplo: as sequências de sons /ts/ e /ds/ do proto-indo-europeu se perderam em latim. Assim, "potentes" (no plural) em latim é potentes, mas no singular é potens, pois o t da forma original (*potents) se perdeu. Da mesma forma, a conjugação do verbo "ser" (esse) em latim é sum, es, est (de onde vem o nosso sou, és, é), mas a conjugação do verbo "poder", que em latim é derivado da expressão potis esse ("ser capaz") é possum, potes, potest, pois o t do *potsum original se perdeu, e essa perda é refletida na escrita.

E quanto ao próprio verbo "ser"? Sum, es, est, sumus, estis, sunt não é exatamente um primor de regularidade. Ok, o verbo "ser" é irregular em tudo que é língua, especialmente nas línguas indo-européias... interessante essa última observação, não? Acontece que a forma reconstruída desse verbo em proto-indo-europeu é h₁ésmi, h₁ési, h₁ésti, h₁sm̥ós, h₁sté, h₁sénti, que tem uma cara bem mais regular; até dá para distinguir um radical: h₁es-. (Em proto-indo-europeu, é comum os radicais terem a forma consoante-vogal-consoante, onde a vogal alterna entre e, o e ausência de vogal ao longo da conjugação ou declinação.) Agora o que é esse h₁? Trata-se de uma das chamadas consoantes laringeais do PIE. As laringeais não são nada mais, nada menos do que sons similares a h, que se perderam em todas as línguas descendentes exceto na família do hitita, deixando apenas vestígios de sua anterior existência (normalmente na forma de vogais ou efeitos sobre vogais adjacentes) na maioria das línguas indo-européias. That's right, os hs do PIE já tinham ficado mudos 3 mil anos atrás e os romanos nem chegaram a tomar conhecimento de sua existência, e portanto eles não são refletidos na escrita do latim. (Os hs do latim provêm de outros fonemas do PIE, tais como /gʰ/, que se "corromperam" e transformaram-se em h com o tempo.) Se os falantes de proto-indo-europeu estivessem vivos e dotados de escrita nessa época, eles teriam tido a mesma reação diante da escrita do latim que nós temos diante de propostas de reforma ortográfica em português.


I disapprove of your orthographic developments!

O ponto onde eu quero chegar é: defende-se a manutenção da ortografia atual para conservar as relações etimológicas com o latim, língua-origem do português, mas o próprio latim não preserva em sua ortografia diversas relações etimológicas com a sua língua-origem. Se os falantes de latim clássico podiam escrever como falavam, por que nós não podemos?

Disclaimer

Não, embora possa parecer, eu não estou promulgando a reforma; no momento não expresso nem apoio nem oposição. Meu intento foi unicamente demonstrar uma fraqueza do argumento pró grafia etimológica. Certamente há outros argumentos possíveis em favor da grafia etimológica (por exemplo, que manter uma proximidade com a ortografia do latim facilita nossa vida para aprender outras línguas latinas e o inglês), bem como contra (escrevemos amigo e amizade (do latim amicus e amicitate-) e nem por isso deixamos de perceber a relação entre essas palavras). Decida por si mesmo. Ou não.

Comentários / Comments (7)

Marcus Aurelius, 2014-08-30 10:20:06 -0300 #

Vagamente relacionado:

Parece que em faculdades de artes, é obrigatório desenhar mal:

http://www.huffingtonpost.com/f-scott-hess/is-deskilling-killing-you_b_5631214.html

Não li tudo, mas minha reação foi do tipo: "É ridículo, mas já dava pra perceber essa insensatez décadas atrás... Por isso prefiro as exatas". Destaque para "the absence of art is the art".

Imagino que tenham cansado tanto do realismo que partiram para o "quanto mais feio/absurdo, melhor".

Na ortografia deve ter acontecido a mesma coisa: cansaram do óbvio e fácil, começaram a se iludir com ideais abstratos e convenceram um monte de gente no caminho. Eu posso conviver tranqüilamente com algumas idiossincrasias aqui e ali devido à história de cada língua, agora piorar as coisas de propósito, adicionando letras mudas*, por exemplo, aí é de cair os butiá** do bolso. Começar a teimar dizendo que "é melhor" quando é mais irregular também é de cair os butiá**. Melhor não é; dá pra entender que nunca escreveremos no alfabeto fonético internacional, mas melhor não é.

* Como o B e S em debt e island do inglês, e provavelmente deve ter acontecido algo semelhante em algum momento do português, quando ao terem em mãos a decisão «com H ou sem H» decidiram:
«com H fica, tipo assiiiiimmm, "mais bonito"».

** A expressão exprime maior indignação ao não fazer a concordância: «os butiá» (sic)


Vítor De Araújo, 2014-08-30 12:11:54 -0300 #

Hahaha, "the absence of art is the art" é ótimo. Eu responderia que "the absence of grade is the grade" se eu fosse o professor, mas né. :P

O inglês e o francês se puxam pra bagunçar a ortografia (adiciono à lista o 'g' em "vingt" em francês (< latim "viginti"; como aquele 'g' foi parar depois do 'n' é um grande mistério da humanidade)). No português eu não vejo muito isso; normalmente as inconsistências são na forma de um caso em que a ortografia foi simplificada vs. outro em que ela foi mantida como era, mas não de adicionar letra onde não era pra ter. Agora o critério que se usa pra simplificar uns casos e não outros deve ter tido uma dose de "fica mais bonito" mesmo. :P

Quanto aos butiá, pra mim essa é a versão correta da frase. *"Me caiu os butiás do bolso" é agramatical em gauchês. :P


Fernando, 2015-07-08 23:18:42 -0300 #

A ideia de uma "ortografia oficial" e "reforma ortográfica" é muito burra. E autoritária, ditatorial. A pior coisa que poderia ter acontecido à língua portuguesa foi terem imposto uma terrível ortografia pseudofonética à qual todas as palavras devem se conformar.

Primeiro, como a aparência das palavras mudou, obras, por exemplo, do século XIX subitamente se tornaram antigas, de certa maneira "ilegíveis". Pegue um livro em inglês do século XVII, como o "an Essay on Human Understanding", de Locke, e a ortografia é a praticamente a mesma! Isso dá uma vitalidade e atualidade imensa às obras, que não precisam ser "adaptadas". Quando a grafia que os autores usaram é a mesma que a nossa atual, pode-se de certa forma dialogar com eles como se estivessem vivos, eles são nossos iguais. Que tolice, traduzir uma livro de uma língua para a mesma língua. Até considero isso uma certa traição aos autores das obras, que poderiam preferir a ortografia que utilizaram originalmente.

Segundo, a ideia de uma ortografia oficial que estabelece que palavra é portuguesa ou não empobrece extraordinariamente a língua. Por exemplo, "show" e "shopping", embora estejam plenamente integradas foneticamente ao léxico do português no Brasil, não são consideradas "oficialmente" palavras da língua portuguesa, por causa da lei burra que exige que todas as palavras "da língua portuguesa" sejam grafadas conforme a tabela uniformizadora dos acordos ortográficos, que destruíram a tradição ortográfica da língua. Isso só poderia ter acontecido na era do estúpido e ditatorial Positivismo.

Mais uma vez, comparo isso com a situação da língua inglesa. Como não há uma "ortografia oficial", e a própria ortografia é rica, tradicional e cheia de exceções (como era a ortografia da língua portuguesa na virada do século XX), qualquer palavra de qualquer idioma do mundo é facilmente integrada e aceita como uma "palavra inglesa". Até palavras com os diacríticos mais bizarros e as convenções ortográficas mais esquisitas são contadas como palavras da língua inglesa.

Além disso, a ortografia oficial foi imposta com base em uma pronúncia de locais e tempos muito específicos, que nunca refletiu diacrônica ou sincronicamente todas as possibilidades de emissões fonéticas dos falantes de língua portuguesa. Por exemplo, em Portugal certamente é corrente a pronúncia de plosivas em fim de sílaba sem apoio de uma vogal epentética. Entretanto, "habitat" não é considerada "oficialmente" uma palavra da língua portuguesa, porque as leis ortográficas estabeleceram arbitrariamente que jamais nenhuma palavra da língua portuguesa pode terminar em "t".

ANEXO: Resposta da Academia Brasileira de Letras, provando a estupidez que é uma ortografia que obriga que todas as palavras sejam grafadas de acordo com regras pré-estabelecidas

"ABL RESPONDE


Pergunta : Estrangeirismos de uso corrente e totalmente integrados à língua, mas com a grafia inalterada, como show e shopping center, são considerados palavras do idioma português ou ainda são palavras estrangeiras?

Resposta : Prezado consulente, embora esses termos por você referidos estejam totalmente integrados em nossa língua, são ainda vocábulos estrangeiros, sem aportuguesamento. A única diferença é que, muitas vezes, eles já aparecem sem o itálico que marca o estrangeirismo em nossa língua."


Vítor De Araújo, 2015-07-09 22:10:20 -0300 #

Olá, Fernando!

Concordo com você que a idéia de impor normas e reformas ortográficas "do alto" é questionável, especialmente quando não há qualquer consulta à população. Por outro lado, não acho que a irregularidade ortográfica de antes das reformas do século passado seja uma boa coisa; há que se ponderar as vantagens de uma ortografia mais conservativa (possibilidade de ler obras antigas na ortografia original) com a dificuldade de aprendizado (acho que há usos melhores para o tempo despendido na escola do que aprender irregularidades ortográficas). Não vejo problema em "traduzir" as obras para versões mais recentes da ortografia; no geral, o conteúdo do texto é mais ou menos independente da grafia usada (com a exceção de jogos de palavras que envolvam a maneira particular como as palavras são grafadas, o que é relativamente raro). Em todo caso, passado tempo suficiente, a língua corrente já vai ter divergido tanto da língua em que uma obra foi escrita que haverá necessidade de adaptação de qualquer forma. Quem preferir ler a obra original pode obter uma cópia do original (o que infelizmente não costuma ser algo de fácil acesso, mas talvez isso mude à medida em que as obras sejam disponibilizadas em meio digital).

Quanto à distinção entre palavras "integradas à língua" vs. palavras "estrangeiras", essa distinção tem algum efeito na prática? As pessoas usam as palavras estrangeiras de qualquer forma, então não vejo isso como fonte de empobrecimento léxico. Parece que a ABL e outras fontes de prescritivismo emanam uma idéia de que estrangeiro = ruim, mas isso não parece corresponder à atitude das pessoas em geral diante dessas palavras. Não vejo problema em haver uma norma "preferencial" na qual as palavras são escritas, e um conjunto de palavras que fogem a essas normas. Na língua japonesa se usam sistemas de escrita distintos para palavras nativas e estrangeiras, mas nem por isso as palavras estrangeiras são consideradas "ruins" em japonês; são apenas uma classe diferente de palavras.

E embora eu também questione a idéia de uma norma imposta por um órgão regulador, na maioria das situações nada obriga que se use a norma (e de fato, tanto quanto me é possível, eu continuo escrevendo com tremas e acentos em tritongos, thank you very much). No ensino e em documentos oficiais é necessário seguir a norma, mas nada nos impede de continuar escrevendo segundo as convenções que nos aprouver no resto do tempo. Por outro lado, é conveniente para facilitar a comunicação que haja algum tipo de padronização, seja de facto (como no inglês) ou de jure (como no português). É uma situação meio complicada, e honestamente não tenho mais nada muito construtivo a dizer no momento...


Vítor De Araújo, 2015-07-09 22:13:34 -0300 #

P.S.: Obrigado pelo comentário! Sempre é interessante ver uma opinião diferente da nossa e tentar entender o raciocínio por trás de outros posicionamentos (especialmente quando a opinião é bem fundamentada e não só um "discordo!! you're wrong!!").


Rômulo Marinho, 2015-07-22 02:56:29 -0300 #

Concordo plenamente com o Sr Fernando. Cada reforma que acontece eles conseguem destruir mais a língua portuguesa. Se alegam que a grafia do português é difícil então não deveríamos parar de escreve-lo?


Vítor De Araújo, 2015-07-22 10:00:00 -0300 #

> Cada reforma que acontece eles conseguem destruir mais a língua portuguesa.

A língua existe independentemente da ortografia. O máximo que uma reforma ortográfica pode destruir é a ortografia da língua.


> Se alegam que a grafia do português é difícil então não deveríamos parar de escreve-lo?

Non sequitur. "Se cortar o pão com uma faca sem fio é difícil, não deveríamos parar de cortá-lo?" Tudo bem argumentar contra uma reforma ortográfica, desde que o argumento seja coerente. Eu acho o posicionamento do Fernando interessante, mesmo discordando dele. Agora apresentar uma posição sem defendê-la com um argumento coerente não nos levará a nada produtivo.


Deixe um comentário / Leave a comment

Main menu

Recent posts

Recent comments

Tags

em-portugues (213) comp (148) prog (71) in-english (62) life (49) unix (38) pldesign (37) lang (32) random (28) about (28) mind (26) lisp (25) fenius (22) mundane (22) web (20) ramble (18) img (13) rant (12) hel (12) scheme (10) privacy (10) freedom (8) esperanto (7) music (7) lash (7) bash (7) academia (7) copyright (7) home (6) mestrado (6) shell (6) android (5) conlang (5) misc (5) emacs (5) latex (4) editor (4) etymology (4) php (4) worldly (4) book (4) politics (4) network (3) c (3) tour-de-scheme (3) security (3) kbd (3) film (3) wrong (3) cook (2) treta (2) poem (2) physics (2) x11 (2) audio (2) comic (2) lows (2) llvm (2) wm (2) philosophy (2) perl (1) wayland (1) ai (1) german (1) en-esperanto (1) golang (1) translation (1) kindle (1) pointless (1) old-chinese (1)

Elsewhere

Quod vide


Copyright © 2010-2024 Vítor De Araújo
O conteúdo deste blog, a menos que de outra forma especificado, pode ser utilizado segundo os termos da licença Creative Commons Attribution-NonCommercial-ShareAlike 4.0 International.

Powered by Blognir.